Marionete



Quando nos acontecem coisas estranhas devemos ir ao medico.

Fui ao medico; ele ainda ficou mais esquisito do que eu. Perguntou-me se tinha dores, disse-lhe que não, receitou-me uns comprimidos e marcou consulta na ortopedia. Tenho um braço esticado, bem acima da cabeça, não o consigo dobrar, parece partido, sem força, sem vida... mas em vez de cair subiu.

Pedi ao ortopedista, mesmo não doendo, para o ligar, pelo menos não pareço doido ao andar na rua de braço no ar. Mas o meu mundo começou a ficar estranho, talvez o sangue que me desce ao cérebro tenha algum efeito, tipo as visões provocadas por trepanação: comecei por ver um rapaz de pernas para o ar.

Não estava preso a parte alguma, tinha os olhos profundos e estranhos. Não queria passar por doido, o que seria fácil já que tenho um braço ligado e no ar, mas, mesmo assim, arrisquei a falar com o rapaz; é demasiado esquisito ver pessoas suspensas e de pernas para o ar:

- Estás confortável assim?

Era só para meter conversa mas ele olhou-me com indiferença, aproximou-se, andado de pernas para o ar através de nada, esticou-se, meteu a mão pela terra, como se ela não existisse, puxou um fio que atou ao meu braço.

Curou-me!

O meu braço voltou à posição normal, ele, o rapaz que andava pendurado no nada, voltou a ter os pés na terra. Olhei-o incrédulo, o seu olhar estranho tinha desaparecido, na verdade todo ele tinha desaparecido dando lugar a um rapaz desgrenhado, ranhoso e mal arranjado, com uma profunda e notória doença mental.

Afastei-me assustado, contente por estar curado, mas não me larga a sensação que tenho fios atados que me condicionam os movimentos, condicionam-me a visão... que estou a ser controlado... que estou a ser enganado!

um salto


Ah como já tentei esquecer teu nome.

Atirei-o às ondas do mar para que fosse para longe
mas retornou na onda mais forte e espalhou-se pela minha praia.

Lancei-o ao vento
mas retornou com os pássaros da primavera

Esqueci-o enterrado num buraco fundo
mas falava-me na noite escura

Tentei rasga-lo, queima-lo...
mas era como gasolina; és fogo em mim.

Confesso, até tentei saltar da ponte alta,
ficava ele e partia eu,
mas há uma voz que chama, que segura pela mão
que ainda prende a este chão

... e todos os dias o arrepio me faz parar nos cruzamentos,
rodar em volta, sentir a presença em cada sombra que atravessa meu caminho,
presa em minhas retinas
chegas primeiro que qualquer coisa que sinta e veja,
marcando com teu gesto tudo que em mim se entrança.




Estramónio

Tal qual um velho bruxo, narcotizado por estramónio, viajo alucinado, montando numa vassoura voadora, percorrendo um mundo próprio, criado pelo progressivo desligar das sinapses cerebrais. Completamente psicótico, vejo luzes, reflexos e bolas coloridas rebentam frente a meus olhos atordoando sentidos e sensações que, suspeito, já ser a única forma de diferencia entre estar meio morto e ter morrido.

Da viagem, tudo quanto fica para trás é percurso sem retorno, montanhas e profundos vales, planuras de nada, esferas em rotação articulada, universos metidos em caixas, prontos a serem despachados em direcções obliquas... Na partida pensei ser uma sucessiva soma tendente a numa qualquer divindade, hoje, parece um amontoado de esquecimentos que preparam e antecedem o sono;

Mas... lembro-me de Ti... (lembro-me sempre de Ti)

Concede-me um beijo antes de adormecer.

Hug

Perco-me em teus olhos, na infinidade dos mundos que existem nos teus olhos... os teus olhos... os teus olhos...




Todas as manhas quando olhas para o espelho, sentes, intimamente, que aquele reflexo, aquela imagem, não é tua. Parece uma porta para um outro mundo, até chegas a tocar a superfície fria do vidro para certificar que a fina membrana que separa as realidades não foi quebrada. Na auto convicção que és tu quem vês; olhas teus olhos e parecem-te uma infinidade de universos contidos uns dentro dos outros; uma imagem reflectida pelo infinito. Perdes-te, fechas os olhos, dás meia volta e segues esquecendo. Sei que é assim. Com o avançar da idade, cada vez mais, também assim é comigo, com a diferença que eu sei que do outro lado existe um outro mundo, quem vejo não sou eu, mas alguém disfarçado de mim. Sei porque eu já estive nesse mundo, já estive nesse pais. Apesar da memória já ser fraca ainda me lembro do meu nome: Alice.

...




only you cares if is raining in my head

Meet

Sono!
Muito sono, lapsos de consciência dispersa que permitem ter uma percepção distante que existes, que estas a dormir... apagam-se... apagam-se... é esta a palavra; apagar - só há percepção que se apagaram porque acordas novamente - sem saberes onde estas, sem saberes o que se passou.

Os momentos de aparente racionalidade vão ficando maiores, permitindo articular pensamentos... as recordações voltam. Voltam vagarosamente, aleatoriamente, sem sentido ou forma, vão-se articulando, encaixando, acomodando numa espiral a que chamas Tu. Consciência. Percepção, no meio de muito sono, que estas no pós-operatório, a acordar de uma anestesia geral.

Mais tarde fica a ideia que morrer é “apagar”, literalmente apagar. Sabes isso só porque acordaste e existe um lapso em que não exististe.

Mais tarte fica a sensação que lembrar é o penoso processo de sermos nós; somos nós na diferente forma como lembramos, na forma e onde o que lembramos se encontra inscrito...

Lembraste de que dia é hoje?

Feridas da Guerra

Amor,

Esta não é uma carta de amor. Não é que não seja ridícula, como qualquer carta de amor, não é que não seja sobre amor, como qualquer outra carta de amor. Não é uma carta de amor pelo simples facto que Tu, Amor, nunca a irás ler. É um simples desabafo quando a dor aperta mais, mas, tal como todos os outros desabafos, destinam-se a alimentar a fogueira em que aqueço as mãos gélidas.

Sei que este momento deve ser particularmente custoso suportar com a notícia da minha morte, mas é melhor assim; “o tempo cura”, apesar da dor, eventualmente, perseguir teus sonhos, as memorias serem sempre presentes e ficares indignada com a injustiça da vida e revoltada com Deus pelo menos serás capaz de refazer a vida.

Pelo menos um de nós terá a possibilidade de construir uma vida normal. A minha, por defeito, será perseguir-te no anonimato, olhar-te por entre as sombras, ao longe, ao longe... e, talvez, num dia mais ousado, em que a saudade do toque da pele seja insuportável, disfarçado, por entre a multidão a minha mão toque a tua.

Só podia ser assim, depois daquela bomba na guerra ter-me levado as pernas, a virilidade, a vida; ter-te levado a Ti.

Partes de mim

O Sol cai no horizonte e eu absorto à passagem do tempo reconheço-me no substantivo mas não na minha própria substancia; sei que sou uma árvore, mas só em dificuldade sinto perene na substância.

A brisa rodeia os meus ramos, percorre-me o corpo rugoso, abana-me as folhas. Só assim as sinto como um conjunto, a soma de todas elas que sou eu.

O movimento que faz vibrar as inúmeras partes de mim faz-me com que me sinta completo.

Cada uma das minhas folhas é um pedaço de ti.

who fuck rule the world



- Porque vais? Porque tens que ir?
- São só seis meses. Pensa; quando voltar vamos poder ter a nossa casa, deixar esta barraca.
Ela soube a força de toda a sua argumentação inútil, encostou a cabeço no seu peito e aproveitou o aconchego dessa noite, que bem podia ser a ultima.

O por-do-sol espalhava uma luz fantasmagórica sobre as aguas calmas, tão calmas quanto podem ser as aguas do mar do norte, contrastando com a violência da tempestade que deixou o barco quase destruído e levou dois companheiros seus. Era um milagre terem regressarem a terra. Muitos meses se passariam ate regressarem a casa.

As máquinas chegaram pela manha, acompanhadas pela polícia, esmagaram as barracas, esmagaram pequenos sonhos. Gloria não tinha para onde ir depois das maquinas terem esmagado os seus sonhos. Sobrevive como cozinheira num pequeno restaurante do interior e dorme na barraca das traseiras. De quando em vez, sempre que junta algum dinheiro, vai junto ao mar, perto da sítio onde um dia teve uma barraca que foi substituída por um hotel, olha o mar, suspira, pensa em Júlio.

Júlio, quando regressou, passados muitos meses, não encontrou a sua barraca, não encontrou Gloria. Vive uns quilómetros mais acima, namora a Ana, mas sempre que pode vai junto ao mar. Não olha para o mar, revoltado por o ter roubado, mas espraia o olhar pela praia na esperança de encontrar Gloria.

Passaram anos e Júlio e Gloria vão cruzando o mesmo espaço em tempos diferentes ou no mesmo tempo em espaços diferentes; nunca se encontraram, provavelmente nunca se irão encontrar. Mesmo que se encontrem, provavelmente, já não se vão reconhecer, ou talvez não...





Rio

... a lebre parou, exaurida da corrida, junto à pequena cascata do ribeiro, aninhou-se junto as rochas e adormeceu. O ruído da água acordou-a (ou talvez não), parecia trazer uma voz suave e longínqua; prestou atenção...

Era só uma cantilena, um lá lá lá que o rio entoava em alegria.

A lebre, ainda cansada, estranhou e perguntou:
-Não te cansa a cantoria, não te cansa a correria, nunca paras?

-Não, não paro, não posso parar, sou assim...

-As vezes é preciso fazer uma pausa, parar. Parar não é desistir é só encontrar novas forças para prosseguir.

-Ah... uma vez pensei assim, julguei-me cansado e parei. As minhas águas acumularam, fizeram um grande lago, inquinaram, cresceram em mim algas, os meus peixes definharam, havia um cheiro pútrido, estava a morrer. Então soltei as minhas agua e voltei a correr, por onde passava via a morte e desolação por ter parado, arrependi-me.

-Oh! Tenho pena de ti, tens que estar sempre em esforço para que os outros não morram.

-Não, não... esforço fiz eu para estar parado, sou assim, tal como um coração só é coração enquanto bater, um rio só sabe correr para o mar...


"acção fantasma à distância" de Einstein

Penduram-se coisas nos meus sonhos, ficam ali presas à escuridão circundante, como se fossem coloridos enfeites de Natal. Não as reconheço, fecho os olhos e estão lá, assumindo varias formas: ora são pontos de luz, ou raios de inúmeras ramificações, ou explosões, complexas variações de cor e luz que sei não serem produções minhas, influências inconscientes de algo ou alguém...

O mundo dos sonhos é muito parecido com a realidade.

Existe um aspecto em física quântica segundo a qual as propriedades de duas partículas podem ser unidas quando elas se encontram separadas, chamado fenómeno de "acção fantasma à distância" de Einstein. Por outras palavras, um par de partículas quânticas (Ex: electrões, fotões) com uma ligação (Ex: fragmentação de uma partícula estacionária em A e B), independentemente do espaço que as separe encontram-se ligadas e, ainda que nenhuma força física real se transmita entre A e B, ambas parecem COOPERAR em seu comportamento numa espécie de conspiração.


http://www.youtube.com/watch?v=oXRQYsrnZqA


PS: existe no fim deste vídeo uma mensagem subliminar, é importante, para que a mensagem seja completa, ver o vídeo até ao fim.



Amelia




Amélia pequenita,
veste um vestido de chita
estampado, encarnado,
com um laço de lado.

Amélia bonita,
cabelo atado com uma fita,
sapatos de verniz,
e no coração uma cicatriz.

Amélia calada,
mesmo sangrado não diz nada.
No olhar profundo
vê-se o coração fechado ao mundo.

Amélia sozinha,
ainda novinha
o seu coração já foi para a cova
junto com a mãe que morreu nova

Amélia têm um pai covarde;
bêbado, regressa tarde,
cobrindo-a de lama,
mete-se na sua cama.

Amélia, corpo e alma retalhada,
na noite larga uma lágrima,
na noite não grita,
de dia veste um vestido de chita.

Amélia desesperada
Amélia de coração em brasa
Amélia esconde a faca da cozinha
debaixo da sua camisinha

Amélia seu coração pula e salta,
na noite escura e alta,
enquanto a lágrima lhe cai
trespassa o coração do pai

Amélia de vermelho pintada.
Sua alma em sangue lavada.
sai para a noite fria
expurgar os restos da heresia

Amélia abandonada
sobe a torre do campanário
e do alto do santuário
parte ao encontro das pedras da estrada


Vazios



Tanta gente! Tanta gente! Passam apressados, outros arrastam-se, outros param e compram uma revista ou o jornal. Uma panóplia que vejo passar. Com o tempo desenvolve-se uma espécie de voyeurismo, é para entreter as horas mortas, intervalo entre a venda de duas chicletes e a revista de croché, fica-se a imaginar a vida de cada um que passa; a senhora, cabisbaixa, de óculos escuros, deve ser vítima de violência doméstica, o executivo, de fato e pasta de cabedal, quase de certeza tem lá dentro chicotes, algemas e meias pretas.

O senhor Malafaia. Não sei se esse é o seu nome, mas, para mim, chamo-o assim, acho que o nome tem a ver com a sua postura. Aos anos que, todos os dias, lhe vendo o jornal e um maço de tabaco de enrolar sem que tenhamos trocado mais de meia dúzia de palavras, nunca de cariz pessoal. Vive umas portas acima do quiosque.

No intervalo da manifestação, manifestação de não sei o quê, também não é importante, manifestam sempre o mesmo; o inverso ao que de facto são, acabei por pensar no senhor Malafaia – Aos dias que não o vejo, que não lhe vendo o jornal. Pode estar doente, não lhe conheço família.

Não sei porque ímpeto fechei o quiosque, subi a rua e bati na porta que cedeu aberta. Ao entrar, o cheio pouco agradável contrastava com a limpeza da casa, ou melhor dizendo limpeza completa, não havia pó, não havia móveis, não havia nada, somente o cheiro desagradável e paredes vazias.

No meio da ampla e imaculada sala estava o senhor Malafaia sentado numa poltrona, contornei-a para o ver de frente. Estava completamente nu e morto.

Do seu lado esquerdo estavam três fatos, devidamente dobrados, com os correspondestes sapatos. De frente a ele estavam todos os jornais que lhe vendi devidamente empilhados em lotes correspondeste aos anos, notava-se pelo amarelecido do papel, julgo que nunca foram abertos. Mais ao lado os maços de tabaco devidamente empilhados e por abrir. Do seu lado direito uma pequena lata com moedas que já não chegavam para mais um jornal e um maço de tabaco.

As palavras são toscas ferramentas de prender sentimentos e emoções, ficam somente presas a elas sombras e névoas, e ali, naquela sala, as sensações remoinharam confusas, mas havia a nítida sensação de uma mensagem subliminar que ficara por ler. Só a entendi ao olhar para as mãos e constatar a similaridade entre os traços das minhas mãos e as do morto, de todos os mortos, de todos os vivos, e as sombras que projectam na colecção de vazios.








Silencio

Paira a mosca sobre o prato da sopa. O preciso instante em que decide parar e... cair... cair... cair... o preciso instante em que decide e já não é capaz de o fazer... toda a sucessão de produtos sucedâneos consumiram o livre arbítrio, as asas não param de bater.

O livre arbítrio é a distância entre a loucura sanidade e eu tenho a cabeça como se fosse fruta bichada... sinto insectos lá dentro, roendo o que um dia fui eu, restando a lascívia de destruir um território virgem... ah sim, sinto-os lá dentro; lá dentro como se eu não estivesse lá. Lá é um lugar que não é meu, é dos bichos. Eu sou num qualquer outro lugar onde não me reconheço, onde não há espelhos, não há imagem de mim, somente uma estreita ligação aos bichos; sinto o cheiro da fruta bichada...

E depois há o silencio.
o silencio em que me recolho,
o silencio em que te defendes,
o silencio em que nos encontramos,
o silencio que se entranha...

até que não reste mais nada que não seja silencio...


Dead



Qual o importantíssimo valor que o teu egocentrismo catalisa que seja mais digno de prevalecer à morte do que a beleza das pétalas de uma papoila?

Matronas

Há uma pomba que arrolha ao canto da janela.

Uma luz matinal e fria entra e alumia

os lençóis descompostos de flanela.

Um corpo nu e inerte, esticado sobre a carpete,

olha as duas matronas que o espelho reflecte.

Tu e Eu...

contemplando o silencioso apodrecer dos trapos.

O outro corpo a seu lado, nu e inerte,

mistura o sangue dos pulsos também cortados

O que vê, o que o espelho reflecte?

Duas matronas apodrecidas,

ou dois corpos mortalmente mutilados?

O crime

Autor: Bissarie




Há rasgos de mim que se atropelam, rodopiam memorias, nebulosas brumas em que me perco e desfaleço e caio ininterruptamente ao aconchego da terra que me acolhe.

Só mais uma vez!

Não que fosse um pedido, mas era uma necessidade intrínseca de revisitar o local do crime. Todo o criminoso volta ao local do crime. Percorri os mesmos trajectos, olhei nas mesmas direcções, vi as mesmas portas, as mesmas casas e ali, mesmo na entrada do shopping, onde deveria estar pintada a marca do corpo caído no chão, parei estupefacto, porque, de facto, o local, o preciso local, estava limitado por cercarias metálicas.

Tantos anos! Tantos anos volvidos e ainda haveria memoria? Senti tonturas e olhei em volta procurando polícias imaginários ou agentes disfarçados. Mas não, eram só pequenos espasmos de restos de adrenalina segregada pela minha mente doentia.

Encostado e sem acção via-te a descer a rua. (Era um ver quase pornográfico já que não existe nada de mais intimista do que o criminoso e a sua vitima) o recordar a aproximação e o sentimento de indecisão, como o ligeiro afagar e acariciar a arma que esta no bolso, o momento a acontecer e a certeza que alguém vai ficar ali, derramando o sangue nas pedras da estrada.

Por mais que tente retardar o momento, passa-lo em câmara lenta, levar cada segundo à extensão do infinito, não me é inteligível, passou-se tudo fora de mim,

Eu nem cheguei a tocar a arma, já os teus lábios estavam colados nos meus, na infinita fracção do segundo passei de criminoso a vitima e rolava pela estrada, caindo ininterruptamente na direcção do nada....