Vazios



Tanta gente! Tanta gente! Passam apressados, outros arrastam-se, outros param e compram uma revista ou o jornal. Uma panóplia que vejo passar. Com o tempo desenvolve-se uma espécie de voyeurismo, é para entreter as horas mortas, intervalo entre a venda de duas chicletes e a revista de croché, fica-se a imaginar a vida de cada um que passa; a senhora, cabisbaixa, de óculos escuros, deve ser vítima de violência doméstica, o executivo, de fato e pasta de cabedal, quase de certeza tem lá dentro chicotes, algemas e meias pretas.

O senhor Malafaia. Não sei se esse é o seu nome, mas, para mim, chamo-o assim, acho que o nome tem a ver com a sua postura. Aos anos que, todos os dias, lhe vendo o jornal e um maço de tabaco de enrolar sem que tenhamos trocado mais de meia dúzia de palavras, nunca de cariz pessoal. Vive umas portas acima do quiosque.

No intervalo da manifestação, manifestação de não sei o quê, também não é importante, manifestam sempre o mesmo; o inverso ao que de facto são, acabei por pensar no senhor Malafaia – Aos dias que não o vejo, que não lhe vendo o jornal. Pode estar doente, não lhe conheço família.

Não sei porque ímpeto fechei o quiosque, subi a rua e bati na porta que cedeu aberta. Ao entrar, o cheio pouco agradável contrastava com a limpeza da casa, ou melhor dizendo limpeza completa, não havia pó, não havia móveis, não havia nada, somente o cheiro desagradável e paredes vazias.

No meio da ampla e imaculada sala estava o senhor Malafaia sentado numa poltrona, contornei-a para o ver de frente. Estava completamente nu e morto.

Do seu lado esquerdo estavam três fatos, devidamente dobrados, com os correspondestes sapatos. De frente a ele estavam todos os jornais que lhe vendi devidamente empilhados em lotes correspondeste aos anos, notava-se pelo amarelecido do papel, julgo que nunca foram abertos. Mais ao lado os maços de tabaco devidamente empilhados e por abrir. Do seu lado direito uma pequena lata com moedas que já não chegavam para mais um jornal e um maço de tabaco.

As palavras são toscas ferramentas de prender sentimentos e emoções, ficam somente presas a elas sombras e névoas, e ali, naquela sala, as sensações remoinharam confusas, mas havia a nítida sensação de uma mensagem subliminar que ficara por ler. Só a entendi ao olhar para as mãos e constatar a similaridade entre os traços das minhas mãos e as do morto, de todos os mortos, de todos os vivos, e as sombras que projectam na colecção de vazios.








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